O Que Faltava

O Que Faltava #68

The Smile: Under Our Pillows ◆ Matilha (série RTP) ◆ Joana Sá: a body as listening resonant cartography of music (im)materialities ◆ André 3000: I Swear, I Really Wanted To Make A “Rap” Album But This Is Literally The Way The Wind Blew Me This Time ◆ Cinema Trindade: 7.º Aniversário ◆ Steve Gunn + David Moore ◆ Victor Erice: Fechar os Olhos ◆ Jlin: Black Origami ◆ Mariana Tengner Barros: Threshold

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Jornal de Guimarães, Música

JdG / A Ouvir #24

Steve Gunn & David Moore / Let the Moon Be a Planet

(RVNG Intl., LP, 2023)

Há músicos e discos que nos ajudam a ouvir o silêncio, que nos aproximam dessa plenitude difícil de descrever que é o Universo e imaginar que som farão os astros quando se movem. Tenho pensado nisto nos meus curtos passeios noturnos enquanto passeio a minha cadela. Não poucas vezes detenho-me durante uns minutos a olhar para as estrelas. Numa dessas noites levava nos auscultadores o disco gravado de improviso entre o guitarrista Steve Gunn e o pianista David Moore, este último talvez mais conhecido pelo seu projeto Bing & Ruth. Fiquei comovido pela forma como tudo se ligava de forma tão formidável e bela. O disco chama-se, justamente, “Let the Moon Be a Planet” e é um belo disco para olhar o céu e as estrelas. Tal como o é a música de “Ambient 1: Music for Airports”, do Brian Eno, de 1978, como bem refere Brian Howe, na crítica que escreve para a Pitchfork sobre o disco. Tanto um disco como o outro são bandas sonoras perfeitas para o pensamento e para a contemplação. Digamos que o nosso olhar ou a nossa reflexão interior consegue alcançar mais além com o suporte desta música tão delicadamente talhada. São oito peças instrumentais de dois instrumentos acústicos, que interagem perfeitamente, deixando espaço para o vazio, para o silêncio. Imagina-se com facilidade o espaço em que os músicos estão a tocar, seja lado a lado, ou eventualmente frente a frente. Podemos imaginar vários cenários, desde uma grande sala de um estúdio, ou uma ala de um palácio. Que se abram as portas da perceção!


Bill Laurance & Michael League / Where You Wish You Were

(ACT Music+Vision, LP, 2023)

Por coincidência, a segunda sugestão é novamente um disco de música instrumental e mais uma vez um pianista e um guitarrista, neste caso, Bill Laurance e Michael League que, além da guitarra, toca também baixo e alaúde, um cordofone cujo som nos remete para a música antiga, numa geografia que anda entre o Mediterrâneo e a Penísula Arábica. É exatamente para esses lados que esta música me leva. Este é um disco mais centrífugo, que nos atira para fora do lugar que ocupamos. Neste sentido e pela mesma ordem de ideias, o disco de cima é centrípeto, na medida em que se enrosca no nosso âmago, no que somos e no espaço que ocupamos relativamente ao que nos é exterior. De resto, há muitas semelhanças naquilo que se poderá dizer destes dois discos. Colocá-los lado a lado começou por fazer todo sentido, até chegar à parte de ter de escrever sobre eles, já que os argumentos para o disco de cima são em grande parte válidos para este também. É por isso nos detalhes que me valerei para falar deste “Where You Wish You Were”, que é um disco muito mais próximo do universo do jazz, embora estejamos ainda dentro dos domínios da música improvisada. Ambos os músicos fazem parte de um portentoso coletivo de Nova Iorque chamado Snarky Puppy, com quatro Grammys no currículo, que vale a pena conhecer. “Empire Central” é o mais recente disco deste coletivo e é uma bomba. Laurance e League são, portanto, velhos conhecidos. Encanta-me pensar no que deve ser partir para um ato colaborativo como aquele que resulta num disco como este. Esta corrente criativa que se gera é algo verdadeiramente entusiasmante e extraordinário, mesmo que não sejamos capazes de a descrever. Ou talvez seja exatamente por isso mesmo.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de abril de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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