Jornal de Guimarães, Música

JdG / A Ouvir #32

NewDad / Madra

(Fair Youth, LP, 2024)

É avassaladora a quantidade de música a que temos acesso nos dias de hoje. Pode ser desorientador ter tanto que escolher e pode ser frustrante nunca chegarmos a ouvir tudo aquilo que gostaríamos. Os NewDad são uma das bandas que descobri recentemente. Ouvi-os pela primeira vez por sugestão do festival End Of The Road, que acontece no Reino Unido. Os NewDad são da cidade de Galway, na costa oeste da Irlanda. Eles começaram a lançar música regularmente na altura da pandemia, em 2020 e afirmaram-se sobretudo online. Primeiro, em forma de singles e EP’s e agora o LP “Madra”. São canções ondulantes, no cânone da melhor tradição pop-rock. Há referências a New Order e The Cure, mas também ao melhor indie, como Warpaint ou Bombay Bicycle Club. Enquanto ouvia o disco refletia sobre estas referências, sobre um pormenor ou outro, que me lembrava algo que já havia ouvido antes. Nesta constante demanda por “música nova” é inevitável que haja um cruzamento de referências do nosso background musical. É o que acontece com os NewDad, fazem lembrar algo, mas mesmo assim continuam irresistíveis e relevantes. Especial relevância para as letras da vocalista Julie Dawson, com referências ao tormento, depressão e autodestruição. Encontramos estas mágoas porque, num ou noutro momento, também lá estivemos. “Madra” é um álbum que nos permite permanecer num lugar de conforto, o que é bom. Estar constantemente à espera de ouvir algo totalmente novo é como ter constantemente de mudar de sítio e isso pode ser muito cansativo. Os NewDad andam em digressão pelo Reino Unido, com todas as datas já esgotadas. Em abril passarão por Guimarães, para a edição de 2024 do Westway LAB.


Kim Gordon / The Collective

(Matador, LP, 2024)

Entrei relativamente tarde no universo dos Sonic Youth. Não me lembro bem porquê. Vi-os ao vivo uma vez, no Festival Sudoeste, em 1998, numa noite que teve também os Yo La Tengo e ainda os portugueses Pinhead Society. Não estava preparado para tamanha descarga energética e acabei a noite com uma terrível dor de cabeça. O primeiro álbum de Sonic Youth que ouvi foi o último oficial da sua discografia – “The Eternal”, de 2009. Entrei pela porta dos fundos, até que um colega me começou a sugerir alguns discos como os Kyuss, At The Drive In, Pavement, Dinosaur Jr. e, claro, Sonic Youth. Lá fui entrando a medo pela discografia e descodificando as descargas elétricas de uma banda que, em palco, chegava a ter três guitarras em interação caótica. Consigo perceber melhor os Sonic Youth agora, à distância, como se o tempo se encarregasse de lhes atribuir um significado e um lugar no eixo cardinal das referências musicais. Entretanto, fui vendo os elementos a solo da formação clássica da banda – Thurston Moore, Steve Shelley e Lee Ranaldo , este último em Vila Real, num concerto bastante secreto. Nunca vi Kim Gordon a solo, mas ela tem andado mais entretida com as artes plásticas, que foi por onde ela entrou na cena nova iorquina. Acabou de lançar o seu segundo disco “The Collective”. Kim Gordon é uma esteta. A arte e os seus significados não são dissociáveis de qualquer parte do seu trabalho. Deu para perceber isso ao ler “Girl In A Band” (com edição em português pela Bertrand). “The Collective” é um conjunto de canções das melhores que ouvi para já neste ano de 2024. São temas carregados de estática, com distorções abrasivas e batidas eletrónicas industriais. É um disco vindo de quem nunca teve receio de provocar. É um disco desconfortável e também é preciso que alguém nos tire da zona de conforto.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de março de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #31

The Legendary Tigerman / Zeitgeist

(Tigre Branco, LP, 2023)

A primeira vez vez que vi The Legendary Tigerman foi em 2005, no Café Concerto do Centro Cultural Vila Flor, apinhado de gente. Nessa altura, o ex-Tédio Boys já tinha lançado dois discos, que apontavam um caminho de sucesso, que acompanhava a tendência internacional de ressurgimento do rock. Era na altura em que Paulo Furtado se apresentava em formato one man band. Foi um concerto poderosíssimo, cheio de adrenalina e suor, como convém num concerto de rock. Vi-o já algumas vezes depois desse concerto, mas não mais me esqueço daquele primeiro encontro. Inclusivamente, viria a programá-lo na temporada de lançamento dos Banhos Velhos, em 2011. Com o passar dos anos, Paulo Furtado tem procurado reinventar-se, tentando desviar-se de uma fórmula que é por definição limitada, mas mantendo sempre presente a matriz blues-rock que o caracteriza. Há frequências sonoras, que guitarra-baixo-bateria não conseguem preencher. Foi ao ver um concerto de música eletrónica que Paulo Furtado percebeu isso mesmo e decidiu de vestir outro figurino, recorrendo a sintetizadores e sequenciadores. É assim que chegamos a “Zeitgeist”, o disco mais interessante de The Legendary Tigerman desde “Femina”, de 2009. As canções soam mais experimentais, exercícios de remistura, como se tivesse havido um outro disco antes deste, feito com recurso aos instrumentos habituais. Tal como havia feito em “Femina”, acompanham-no outras vozes, como a de Asia Argento (que também participou em “Femina”), Jehnny Beth (Savages) e Delila Paz (The Last Internationale). “Zeitgeist” é um disco inconformado, que foge de todos os lugares de conforto que The Lagendary Tigerman ocupou até agora. Oportunidade para vê-lo ao vivo, no dia 24 de fevereiro, no Centro Cultural Vila Flor.


Micro Audio Waves / Glimmer

(Edição de autor, LP, 2024)

O trajeto dos Micro Audio Waves é discreto. Diria que não será uma banda transversal, a sua música não é orelhuda. A carreira deste projeto tem sido levada com longos tempos entre discos. A música não é imediata, não entra na primeira audição. Há sempre algo perturbador na música dos Micro Audio Waves, algo se estranha e que se entranha logo a seguir. Contudo, este “Glimmer”, saído no início do mês de fevereiro é um disco sem essas arestas, que criavam uma espécie de abrasão no ouvido. É um disco com arranjos que não se desviam da pop, com uma presença preponderante das eletrónicas. Não obstante, o disco é também muito orgânico, com o baixo pungente de Francisco Rebelo e os arpegios de Flak na guitarra. Este, com Carlos Morgado, é responsável pela camada sintetizada do disco. Cláudia Efe mantém a sua personalidade vocal inalterada desde que a ouvi pela primeira vez. Talvez neste disco recorra menos a dissonâncias, que era o que, em parte, muito contribuia para a estranheza que se sentia nos discos anteriores. O disco de 2010, “Zoetrope”, deu origem a um espetáculo irrepreensível do ponto de vista visual. Quem o viu certamente que o terá presente na sua memória. Também em “Glimmer” houve um trabalho conjunto da banda com o coreógrafo Rui Horta, o que originou um espetáculo que, no palco, conta ainda com a interpretação de Gaya de Medeiros. “Glimmer” estreou em Aveiro, coincidindo com a saída do disco e está a circular pelo país. Dia 9 de março terá passagem pelo Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de fevereiro de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #30

Cristina Branco / Mãe

(Locomotiva Azul, LP, 2023)

O fim do ano é o momento tido como ideal para se fazerem balanços sobre o que de melhor e pior aconteceu nos últimos 12 meses. É por esta altura que surgem as listas dos melhores discos do ano. Listas para vários gostos, feitas por publicações das mais conceituadas até às do comum ouvinte, seja mais ou menos melómano. Eu também fiz a minha e partilhei-a no primeiro dia de 2024. Essa lista não pode ser definitiva, porque há ainda discos de 2023 que ouvirei em 2024. Por vezes, faço um exercício de ir às listas antigas e perceber que discos sobreviveram à prova do tempo. Uns vingam, outros não. Vou escolher um disco que gostei muito de ouvir em 2023 e que, acredito, continuarei a ouvi-lo com igual prazer no futuro. Cristina Branco é uma cantora que eu acompanho desde o início da sua carreira. Apesar de ser uma artista considerada, não me parece que seja uma muito popular em Portugal. Cristina Branco baseia-se sobretudo no fado, mas faz sempre questão de o misturar com outros géneros, como o jazz, a clássica contemporânea, a canção tradicional ou diversas influências da América do Sul. Talvez por isso a sua discografia seja irregular, mas os últimos cincos discos lançados pela cantora são absolutamente intocáveis, onde se inclui o disco lançado em 2023 chamado “Mãe”. Este é um disco de uma sensibilidade ímpar, onde as palavras são medidas a cada sílaba e os silêncios fazem parte do equilíbrio de que se faz este disco. “Mãe” é um disco a que tenho voltado recorrentemente desde que o descobri, que continuo a ouvir e continuarei certamente a fazê-lo.


Vince Clarke / Songs Of Silence

(Mute, LP, 2023)

Vince Clarke é uma figura discreta. Apesar disso, a sua carreira faz com que seja considerado como uma figura incontornável da música das últimas cinco décadas. Ele e Andrew Fletcher foram os elementos fundadores dos Depeche Mode, mas Clarke também foi o primeiro a sair da banda. Criou depois os Yazoo, os The Assembly e mais tarde os Erasure, projeto com o qual conseguiu hits com canções como “Sometimes” ou “A Little Respect”. Nos anos 1980, ficava maravilhado quando apareciam bandas na televisão em que o teclista tinha três ou quatro frentes de teclados com vários níveis cada uma. Ficava fascinado com os concertos do Jean-Michel Jarre quando davam na TV, embora aí me começasse a parecer que muito daquilo era encenado. Fui entrando por onde quase todos entram, através dos discos dos Tangerine Dream, Amon Düül, Kraftwerk e depois toda a cena new wave nos já referidos anos 80. Mais recentemente, há uns anos, descobri no Youtube um vídeo em que Vince Clarke faz uma visita ao seu estúdio, onde está exposta a sua coleção de sintetizadores. Foi a propósito desse vídeo que comecei a pesquisar mais sobre Vince Clarke. É impressionante a quantidade de música em que Clarke pôs as mãos. No entanto, a produção em nome próprio é bastante reduzida, o que me faz pensar que ele não gosta de fazer música sozinho. “Songs of Silence”, lançado em novembro de 2023, é um conjunto de peças instrumentais, que se materializa na exploração de drones ambientais, que convivem bem com o silêncio, o espaço largo e vazio ou a contemplação. Não será um disco para todos, está muito longe dos hits que Vince Clarke produziu no passado, não é um disco que passe na rádio. Mas há neste conjunto de temas um cuidado intrínseco na forma como é apresentado o que torna a sua audição numa experiência imersiva e reconfortante.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de janeiro de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #29

The Rolling Stones / Hackney Diamonds

(Polydor, LP, 2023)

Neste número fazemos uma espécie de memory lane por bandas que nos acompanham há décadas. Esta potência que algumas bandas conseguem, que é ir conquistando sempre novas gerações de seguidores, independentemente da época em que são descobertos. Tanto os Beatles como os Stones continuam a arregimentar seguidores e, por isso, a ser relevantes. Eu sou mais team Beatles, mas reconheço enorme valor aos Rolling Stones. Já fizeram música com sucesso suficiente para estarem descansados nas suas vidas. Não precisavam de fazer mais nada. Mas há algo que os move e que os faz manterem-se ativos em digressões que envolvem produções exigentes. Os Rolling Stones lançaram em outubro um disco novo e a discussão passa por testar a capacidade de resistência ao tempo, mantendo-se a mesma relevância do ponto de vista artístico e musical. Do ponto de vista artístico, os Stones já não terão muito a acrescentar. Já foram uma das bandas mais irreverentes. Hoje, a sua irreverência passa por desafiar os limites que o tempo impõe aos seus corpos, continuando a fazê-lo mesmo após a morte do carismático Charlie Watts. Do ponto de vista musical, os Rolling Stones mantêm a sua fórmula inalterada, com os Glimmer Twins a assumirem os comandos da composição e escrita das músicas. Basta que se mantenham fiéis a si próprios. E é isso que se ouve em “Hackney Diamonds”. Uma dúzia de temas, que só os Stones poderiam fazer. No caso dos Rolling Stones essa previsibilidade é sinónimo de que se mantêm como uma das mais fortes bandas de sempre. Cada vez que os ouvimos há sempre uma lição qualquer a retirar.


Simple Minds / New Gold Dream – Live From Paisley Abbey

(BMG, LP, 2023)

A música popular – pop, rock e pop-rock – está cheia de histórias de rivalidades entre bandas. Essas rivalidades são alimentadas, sobretudo, por grandes corporações em que se tornaram as editoras. Por exemplo, o disco novo dos Rolling Stones, foi seguido pelo lançamento de um novo single dos The Beatles. Ambos lançamentos com mega campanhas de promoção, publicidade e marketing. Podia lembrar-me de outros exemplos, mas aquele que me faz escrever este texto é uma batalha de popularidade entre outras duas bandas – os Simple Minds e os U2. Hoje parece não fazer sentido, mas as duas têm vários aspetos dos quais é possível traçar paralelismos. Ambas começaram na viragem para a década de 1980. Os Simple Minds lançaram “Once Upon a Time” em 1985 e os U2 lançaram “The Joshua Tree”em 1987. Tanto um disco como outro foram seguidos por álbuns ao vivo que venderam milhares de cópias. Hoje sabemos que as duas bandas estiveram perto de terminar e seguiram trajetos muito díspares. Em todo o caso, costumo dizer que os Simple Minds conseguiram envelhecer melhor do que os U2 e os últimos discos e digressões têm provado um pouco isso. O último exercício dos Simple Minds foi regravar ao vivo um dos seus discos mais marcantes, “New Gold Dream”, uma igreja do século XII. O registo está muito bem gravado e recupera de forma fiel o disco original, lançado em 1982. Só restam dois elementos da formação original da banda, mas a atual formação já circula há uns longos anos, enchendo estádios e arenas por toda a Europa. Os U2 também continuam a revisitar a sua carreira, depois de terem tocado no novo hiper-tecnológico The Sphere, em Las Vegas, já sem o seu fundador e baterista de sempre, Larry Mullen Jr.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de novembro de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #28

Slowdive / Everything Is Alive

(Dead Oceans, LP, 2023)

Dos Slowdive guardo a memória bastante recente do memorável concerto que deram em Paredes de Coura, em 2018. Tinha-os descoberto uns anos antes. Tinham lançado há pouco tempo o disco homónimo, em 2017. Esta era já uma terceira vida para a banda. Em 2023, passados cinco anos reaparecem com um novo e recomendável disco – “Everything Is Alive”. O trajeto dos Slowdive não foi nem fácil, nem linear. Aparecem no início da década de 1990 e acabam entalados entre a brit pop e o grunge. Nessa altura, a sua editora, a Creation, fundada por Alan McGee, acabou por preteri-los a favor do Oasis. Encostados a um canto, os discos passaram despercebidos, a banda, desanimada, acabaria por suspender a atividade, depois do lançamento do disco “Pygmalion”. Passaram 22 anos até os elementos da banda se terem reagrupado para lançar o já referido “Slowdive”, em 2017. Neste espaço de tempo, de mais de duas décadas, a banda foi ganhando espaço que não tivera no início do seu percurso. Foram descobertos por novas gerações de melómanos e a banda está num lugar onde nunca esteve, com uma digressão bastante preenchida, dos dois lados do Atlântico. “Everything Is Alive” começou por ser um conjunto de apontamentos de música eletrónica de Neil Halstead, que estavam destinados a um projeto a solo. Em boa hora, Halstead decide mostrar esses seus apontamentos aos seus companheiros de banda, que decidem aproveitar o material para compor novo material para Slowdive. O disco começa logo a definir a sua matriz com o tema “Shanty”, uma mistura de eletrónicas com uma atmosfera de guitarras que nos deixam a levitar. O mesmo estado de levitação que me lembro daquele concerto em Coura, em 2018.


Yussef Dayes / Black Classical Music

(Brownswood Recordings, LP, 2023)

Ouvir profundamente um disco do princípio até ao fim é um prazer que continuo a manter. Admito que faço parte de uma velha guarda, tendo em conta que estamos no tempo em que os singles e as playlists ganharam importância na forma como se ouve música. Há uns anos, um amigo músico sugeriu ouvir o disco “Black Focus” que, vim a perceber depois, juntava o baterista Yussef Dayes ao teclista Kamaal Williams. Yussef Dayes é um prodigioso músico londrino, figura que se tornou incontornável quando se trata de descrever a vibrante cena jazz do sul de Londres. Desde que ouvi “Black Focus”, Yussef não saiu mais do meu radar, até que, em setembro, é lançado o seu disco em nome próprio, chamado “Black Classical Music” – um disco magistral, álbum duplo em vinil. Yussef Dayes já se encontrou com o público português. Esteve em Braga, no Theatro Circo, em 2021. A música sempre foi uma constante na vida de Dayes, que faz parte de uma família numerosa, todos eles músicos, a começar pelo pai que tocava baixo e fez com todos os filhos pudessem estudar música. Começou por aprender piano e com quatro anos teve a sua primeira bateria. Frequentemente, Yussef e os irmãos juntavam-se em animadas jam sessions. A música estava acessível em casa com uma rica coleção de discos onde, entre muitos, havia música Miles Davis e de Billy Cobham. É com este que Yussef Dayes faz um curso, aproveitando uma visita à casa dos avós, em Bath. “Black Classical Music” percorre vários territórios. Um roteiro pela diáspora negra, que se faz através das referências que Yussef foi colecionando ao longo dos anos. Um disco para ouvir do princípio ao fim.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de outubro de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #24

Steve Gunn & David Moore / Let the Moon Be a Planet

(RVNG Intl., LP, 2023)

Há músicos e discos que nos ajudam a ouvir o silêncio, que nos aproximam dessa plenitude difícil de descrever que é o Universo e imaginar que som farão os astros quando se movem. Tenho pensado nisto nos meus curtos passeios noturnos enquanto passeio a minha cadela. Não poucas vezes detenho-me durante uns minutos a olhar para as estrelas. Numa dessas noites levava nos auscultadores o disco gravado de improviso entre o guitarrista Steve Gunn e o pianista David Moore, este último talvez mais conhecido pelo seu projeto Bing & Ruth. Fiquei comovido pela forma como tudo se ligava de forma tão formidável e bela. O disco chama-se, justamente, “Let the Moon Be a Planet” e é um belo disco para olhar o céu e as estrelas. Tal como o é a música de “Ambient 1: Music for Airports”, do Brian Eno, de 1978, como bem refere Brian Howe, na crítica que escreve para a Pitchfork sobre o disco. Tanto um disco como o outro são bandas sonoras perfeitas para o pensamento e para a contemplação. Digamos que o nosso olhar ou a nossa reflexão interior consegue alcançar mais além com o suporte desta música tão delicadamente talhada. São oito peças instrumentais de dois instrumentos acústicos, que interagem perfeitamente, deixando espaço para o vazio, para o silêncio. Imagina-se com facilidade o espaço em que os músicos estão a tocar, seja lado a lado, ou eventualmente frente a frente. Podemos imaginar vários cenários, desde uma grande sala de um estúdio, ou uma ala de um palácio. Que se abram as portas da perceção!


Bill Laurance & Michael League / Where You Wish You Were

(ACT Music+Vision, LP, 2023)

Por coincidência, a segunda sugestão é novamente um disco de música instrumental e mais uma vez um pianista e um guitarrista, neste caso, Bill Laurance e Michael League que, além da guitarra, toca também baixo e alaúde, um cordofone cujo som nos remete para a música antiga, numa geografia que anda entre o Mediterrâneo e a Penísula Arábica. É exatamente para esses lados que esta música me leva. Este é um disco mais centrífugo, que nos atira para fora do lugar que ocupamos. Neste sentido e pela mesma ordem de ideias, o disco de cima é centrípeto, na medida em que se enrosca no nosso âmago, no que somos e no espaço que ocupamos relativamente ao que nos é exterior. De resto, há muitas semelhanças naquilo que se poderá dizer destes dois discos. Colocá-los lado a lado começou por fazer todo sentido, até chegar à parte de ter de escrever sobre eles, já que os argumentos para o disco de cima são em grande parte válidos para este também. É por isso nos detalhes que me valerei para falar deste “Where You Wish You Were”, que é um disco muito mais próximo do universo do jazz, embora estejamos ainda dentro dos domínios da música improvisada. Ambos os músicos fazem parte de um portentoso coletivo de Nova Iorque chamado Snarky Puppy, com quatro Grammys no currículo, que vale a pena conhecer. “Empire Central” é o mais recente disco deste coletivo e é uma bomba. Laurance e League são, portanto, velhos conhecidos. Encanta-me pensar no que deve ser partir para um ato colaborativo como aquele que resulta num disco como este. Esta corrente criativa que se gera é algo verdadeiramente entusiasmante e extraordinário, mesmo que não sejamos capazes de a descrever. Ou talvez seja exatamente por isso mesmo.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de abril de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #23

Carminho / Portuguesa

(Maria Music / Warner Music, LP, 2023)

Comecei a ouvir fado relativamente tarde. Foi preciso sair do país durante uma temporada para que pudesse ouvir fado longe de casa e perceber que aquela música, aquele canto fazia parte da minha identidade. Esta música é lá do lugar de onde eu sou, pensava eu. Foi a partir dessa altura, por volta do ano 2004, que comecei a atentar nos textos, muitos deles da autoria de poetas portugueses e que carregavam consigo uma particular maneira de ser. Ser português é uma forma particular de ser, sem mais ou menos do o que é ser-se de outro país ou de outra geografia. As linhas que limitam os países são sempre muito redutoras. Foi neste processo que cheguei até à Carminho, passados uns anos, em 2009. Nessa altura, começava a trabalhar no departamento de música da FNAC de Guimarães. O disco “Canto”, acabado de lançar, era um dos discos que estavam em destaque quando a loja abriu, naquele mesmo ano. Desde então fui seguindo o percurso da Carminho e descobri como ela própria se descobriu no fado, também longe de casa, quando viajava pelo mundo. Gosto da música da Carminho porque é um fado que não se contém e arrisca. Ao ouvir o disco “Portuguesa” percebemos isso em pequenos detalhes, aos quais apenas damos conta numa escuta atenta. Ouvem-se mellotrons e guitarras elétricas. O último tema do disco tem apenas o acompanhamento de uma guitarra elétrica. Um dos músicos que toca neste disco é o Pedro Geraldes, que até há bem pouco tempo fazia parte dos Linda Martini. A Carminho canta no Theatro Circo, em Braga, no próximo dia 14 de abril.


Tó Trips – Jaguar Popular

(Revolve, LP, 2023)

Não consigo deixar de ouvir o Tó Trips e a sua guitarra, sem me lembrar de Carlos Paredes. São músicos de tempos muito diferentes e que tiveram uma carreira muito diversa o que, à partida, torna difícil um argumentário comparado sobre os dois músicos. Por isso, é-me difícil explicar algo que reverbera no meu interior sempre que ouço a música de Tó Trips. Também há fado na sua música. Quando ouvimos os Dead Combo, era fácil imaginar que alguns daqueles temas poderiam ser fados. O fado é apenas mais uma referência entre muitas que encorporam a música de Tó Trips. São músicas de várias geografias, algumas delas de sítios onde o próprio músico nunca esteve. O disco “Romance(s)”, de Aldina Duarte, que é dividido em duas partes. A segunda são as mesmas canções da primeira, mas reconstruídas pelo Pedro Gonçalves a outra metade dos Dead Combo. Portanto, Carlos Paredes, Dead Combo, Aldina Duarte, Dead Combo. Isto está mesmo tudo ligado. “Jaguar Popular” é o novo disco de Tó Trips, lançado pela editora Revolve, mantendo a relação do registo anterior, a banda sonora para o filme “Surdina”, de Rodrigo Areias. Mais uma vez, desde a primeira hora em que ouvi o disco, não parei de me lembrar de Carlos Paredes. Mesmo enquanto existiram os Dead Combo, Tó Trips trilhou um caminho a solo, mas é inevitável lembramo-nos também dos Dead Combo. Tó Trips parece ter nascido com a guitarra ao colo e pelo que li numa entrevista recente, é assim que gostaria de permanecer até ao último dos seus dias. Ele vai estar em Guimarães a apresentar “Jaguar Popular”, acompanhado por Helena Espvall, no violoncelo, e por António Quintino, no contrabaixo. Será no dia 13 de maio, no Centro Cultural Vila Flor.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de março de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #22

Iggy Pop / Every Looser

(Gold Tooth / Atlantic, LP, 2023)

Poucos dias depois do início do ano novo, Iggy Pop lançou um disco novo. Ele continua a ser uma figura muito particular. Iggy Pop tem hoje 75 anos, o que é idade suficiente para ter atravessado todas as grandes transformações e ondas por que passou a música e a sua indústria nas últimas sete décadas. Natural do estado do Michigan, fundou os Stooges em 1957. Iggy Pop andou pelo CBGB e pelo Chelsea Hotel. Conheceu Warhol, Lou Reed, David Bowie nos anos 1960. Conhecemo-lo como um animal de palco, cujo corpo se curva e enruga e que se atira às multidões. Vi o Iggy Pop ao vivo por duas vezes, a primeira em 2011 e a segunda há poucos meses, em Vilar de Mouros. De ambas vezes recordo a força e energia da sua figura icónica no palco, mesmo que o corpo comece a impor limites ao seu ímpeto frenético. Nos últimos discos que tem lançado, temos ouvido a sua voz grave e surrada, como um narrador. Mas em 2023, Iggy Pop lança um disco novo e lança-se ao poderio sónico das guitarras e do ribombar de baixo e bateria em modo rock ‘n’ roll. Neste disco, junta-se a malta da pesada – Duff McKagan (dos Guns N’ Roses), Chad Smith (dos Red Hot Chili Peppers), Dave Navarro (dos Jane’s Addiction) e ainda numa das faixas do baterista Taylor Hawkins, baterista dos Foo Fighters que morreu no ano passado e que chegou a representar Iggy Pop no cinema.


Esmerine / Everything Was Forever Until It Was no More

(Constellation, LP, 2022)

Dá-me um gosto imenso descobrir música nova. Procuro apanhar o máximo que me chega pelas mais variadas vias. Penso algumas vezes no que está ainda por ouvir, mas que por qualquer desvio ainda não me chegou aos ouvidos. Atualmente, até já há uma sigla que descreve isso. FOMO, sigla para a expressão em inglês fear of missing out. Calma! Ainda não estou lá. Mas é quase como a antibiblioteca do Umberto Eco. Tudo isto para partilhar neste quadradinho uma descoberta recente, que após alguma pesquisa fiquei a saber que se trata de gente já conhecida. Falo-vos do quarteto canadiano Esmerine, que tem este disco de 2022, com um título comprido. É uma espécie de post-rock, mas sem guitarras. Tudo começou com Bruce Cawdron e Beckie Foon, aos quais se juntaram depois Brian Sanderson e Philippe Charbonneau. É quase um ensemble clássico, a música que entregam é cheia de alma, contemplativa e entusiasmante ao mesmo tempo. Para referência, e é aqui que percebo que esta é gente conhecida de outros grupos, Bruce Cawdron fez parte dos Godspeed You Black Emperor! e está nos Set Fire To Flames, onde está também a Beckie Foon que, por sua vez, esteve também nos A Silver Mt. Zion. Dá para perceber aqui um padrão. Sobre este disco de título comprido, é música de câmara contemporânea que se ouve repetidamente sem remorsos.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de fevereiro de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #21

Kelly McMichael / Waves

(LHM Records, LP, 2022)

Este é um disco 2021, embora com uma reedição em maio de 2022. Só recentemente o descobri. O disco “Waves” de Kelly McMichael já estava no meu Posto de Escuta desde julho, mas só no final do ano cheguei até ele. Infelizmente, não tenho forma de passar todo o tempo a ouvir música e nunca como hoje tivemos tanta música para ouvir e de uma forma bastante fácil. Recordo o tempo quando havia a necessidade de ir a uma loja para ouvir discos sobre que tinha lido nos jornais ou revistas. Mudaram muitas coisas. Já não há jornais e revistas a escrever sobre música em Portugal. São raras as lojas de discos, apesar do ressurgimento dos discos em vinil e do aparecimento de pequenas lojas independentes. O processo de escuta e de compra também se alteraram, com as plataformas digitais e as lojas online. Kelly McMichael é uma música e compositora canadiana e este disco fez parte da shortlist dos Polaris Music Prize 2022. Foi desta forma que cheguei até ela e gostei muito do disco por ter um som muito direto e uma composição muito cuidada. Ouve-se tudo com muita clareza, parece que o disco foi gravado com uma banda real a tocar no estúdio. Esta forma direta é também patente nas letras que escreve, nas quais aborda temas como a igualdade de direitos e a homosexualidade, que apenas costumam ser cantados recorrendo a metáforas. Um belo disco de estreia.


Jeff Denson / Finding Light

(Ridgeway Records, LP, 2022)

O segundo disco que trago para esta primeira edição do ano de 2023 também não é novidade, o disco já é de setembro de 2022, mas isso não obsta a que lhe faça referência por ser um dos discos que ouvi repetidamente e com mais atenção em 2022 e desconfio que continuarei a fazê-lo naturalmente em 2023. A gravação do que viria a ser o disco “Finding Light” foi interrompida com o surgimento da pandemia Covid-19. Em 2022, o contrabaixista Jeff Denson voltou a juntar-se ao guitarrista Romain Pilon e ao baterista Brian Blade para terminar aquilo que tinham deixado a meio. Jeff Denson e Brian Blade conheceram-se ainda em 2017, durante uma digressão na qual os dois participavam e decidiram tocar juntos, o que deu origem a uma digressão e à gravação de um disco ainda em 2019. O título deste segundo registo do trio – “Finding Light” deixa antever à partida que este é um disco luminoso e feliz. A forma como os três músicos interagem é magnífica, recuperando integralmente a alegria de voltar a poder estar num grupo a tocar. Talvez fruto disso, este disco é altamente libertador, no sentido em que não é preciso ser conhecedor da teoria musical ou da métrica dos tempos para sermos levados pela boa onda de “Finding Light”. E depois há o Brian Blade na bateria, que é um músico que sigo há uns anos. Aliás, foi por isso que descobri este disco, que recomendo vivamente.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de janeiro de 2023 da revista do Jornal de Guimarães.

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JdG / A Ouvir #20

Party Dozen / The Real Work

(Temporary Residence Limited, LP, 2022)

Certa vez, experimentei ligar um leitor de CDs à entrada do amplificador que normalmente é dedicada aos gira discos. Fiquei fascinado com o som que saia das colunas, que era a música do CD altamente distorcida. Já não me lembro que CD era e muito menos qual era a música. Talvez o meu gosto pela experimentação na música venha dessa experiência. Atualmente, com o desenvolvimento dos instrumentos musicais, multiplicaram-se as possibilidades de experimentação. Um dos meus gostos, principalmente quando vou ver concertos, é estar atento ao equipamento que os músicos usam e de que forma o usam. Nunca vi o duo australiano Party Dozen ao vivo, mas tenho muita curiosidade em perceber como é que eles manipulam os instrumentos que tocam, de forma a que resulte tão poderoso o som que produzem e que se pode ouvir no terceiro e mais recente disco da banda. O duo é composto pela saxofonista Kirsty Tickle e pelo baterista Jonathan Boulet. O som é de power rock sónico, mas feito de forma nada convencional, com camadas de distorção que não conseguimos perceber de onde vêm, apenas com a audição do disco. Era preciso vê-los ao vivo. Nota-se a veia punk e o jazz também entra por ali através do saxofone. A bateria soa a stoner rock pela forma encorpada como marca o tempo de um som por vezes em delírio. Party Dozen é uma banda para figurar no meu radar de concertos.


Kibrom Birhane / Here and There

(Flying Carpet Records, LP, 2022)

Nos últimos anos, foram sendo descobertas grandes caixas fortes com coleções de discos produzidos na imensa região do globo localizada sensivelmente entre os trópicos. Com isso, artistas de que nunca tínhamos ouvido falar têm os seus discos reeditados, muitas vezes décadas depois de terem sido lançados pela primeira vez. O panorama musical alterou-se no sentido de uma maior diversidade. Isso fez com que músicos contemporâneos integrassem algumas dessas referências, ligadas às raízes tradicionais, na música que produzem na atualidade. O jazz é um dos géneros musicais que sempre absorveu e integrou sonoridades africanas, árabes e asiáticas e sul-americanas. Com essa descoberta de velhas músicas por uma geração mais nova, têm aparecido movimentos de músicos em algumas cidades e também novos sub géneros musicais. Kibrom Birhane é um teclista proveniente da Etiópia. “Here and There” é o terceiro disco de Kibrom Birhane. O seu som é altamente contemporâneo e sofisticado, ao qual junta referências da música tradicional daquela região de África. Birhane não é propriamente um autodidata. Ele aprendeu música. Primeiro, num coro e depois numa escola superior, onde também aprendeu produção musical. A etiqueta spiritual jazz tem reaparecido frequentemente nos últimos tempos e acredito que isso esteja correlacionado com a redescoberta de velhos discos, que voltam agora a ser escutados por novas gerações de músicos, que transformam todas essas referências em algo novo e vibrante.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de dezembro de 2022 da revista do Jornal de Guimarães.

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