Jornal de Guimarães, Música

JdG / A Ouvir #32

NewDad / Madra

(Fair Youth, LP, 2024)

É avassaladora a quantidade de música a que temos acesso nos dias de hoje. Pode ser desorientador ter tanto que escolher e pode ser frustrante nunca chegarmos a ouvir tudo aquilo que gostaríamos. Os NewDad são uma das bandas que descobri recentemente. Ouvi-os pela primeira vez por sugestão do festival End Of The Road, que acontece no Reino Unido. Os NewDad são da cidade de Galway, na costa oeste da Irlanda. Eles começaram a lançar música regularmente na altura da pandemia, em 2020 e afirmaram-se sobretudo online. Primeiro, em forma de singles e EP’s e agora o LP “Madra”. São canções ondulantes, no cânone da melhor tradição pop-rock. Há referências a New Order e The Cure, mas também ao melhor indie, como Warpaint ou Bombay Bicycle Club. Enquanto ouvia o disco refletia sobre estas referências, sobre um pormenor ou outro, que me lembrava algo que já havia ouvido antes. Nesta constante demanda por “música nova” é inevitável que haja um cruzamento de referências do nosso background musical. É o que acontece com os NewDad, fazem lembrar algo, mas mesmo assim continuam irresistíveis e relevantes. Especial relevância para as letras da vocalista Julie Dawson, com referências ao tormento, depressão e autodestruição. Encontramos estas mágoas porque, num ou noutro momento, também lá estivemos. “Madra” é um álbum que nos permite permanecer num lugar de conforto, o que é bom. Estar constantemente à espera de ouvir algo totalmente novo é como ter constantemente de mudar de sítio e isso pode ser muito cansativo. Os NewDad andam em digressão pelo Reino Unido, com todas as datas já esgotadas. Em abril passarão por Guimarães, para a edição de 2024 do Westway LAB.


Kim Gordon / The Collective

(Matador, LP, 2024)

Entrei relativamente tarde no universo dos Sonic Youth. Não me lembro bem porquê. Vi-os ao vivo uma vez, no Festival Sudoeste, em 1998, numa noite que teve também os Yo La Tengo e ainda os portugueses Pinhead Society. Não estava preparado para tamanha descarga energética e acabei a noite com uma terrível dor de cabeça. O primeiro álbum de Sonic Youth que ouvi foi o último oficial da sua discografia – “The Eternal”, de 2009. Entrei pela porta dos fundos, até que um colega me começou a sugerir alguns discos como os Kyuss, At The Drive In, Pavement, Dinosaur Jr. e, claro, Sonic Youth. Lá fui entrando a medo pela discografia e descodificando as descargas elétricas de uma banda que, em palco, chegava a ter três guitarras em interação caótica. Consigo perceber melhor os Sonic Youth agora, à distância, como se o tempo se encarregasse de lhes atribuir um significado e um lugar no eixo cardinal das referências musicais. Entretanto, fui vendo os elementos a solo da formação clássica da banda – Thurston Moore, Steve Shelley e Lee Ranaldo , este último em Vila Real, num concerto bastante secreto. Nunca vi Kim Gordon a solo, mas ela tem andado mais entretida com as artes plásticas, que foi por onde ela entrou na cena nova iorquina. Acabou de lançar o seu segundo disco “The Collective”. Kim Gordon é uma esteta. A arte e os seus significados não são dissociáveis de qualquer parte do seu trabalho. Deu para perceber isso ao ler “Girl In A Band” (com edição em português pela Bertrand). “The Collective” é um conjunto de canções das melhores que ouvi para já neste ano de 2024. São temas carregados de estática, com distorções abrasivas e batidas eletrónicas industriais. É um disco vindo de quem nunca teve receio de provocar. É um disco desconfortável e também é preciso que alguém nos tire da zona de conforto.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de março de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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Jornal de Guimarães, Música

JdG / A Ouvir #31

The Legendary Tigerman / Zeitgeist

(Tigre Branco, LP, 2023)

A primeira vez vez que vi The Legendary Tigerman foi em 2005, no Café Concerto do Centro Cultural Vila Flor, apinhado de gente. Nessa altura, o ex-Tédio Boys já tinha lançado dois discos, que apontavam um caminho de sucesso, que acompanhava a tendência internacional de ressurgimento do rock. Era na altura em que Paulo Furtado se apresentava em formato one man band. Foi um concerto poderosíssimo, cheio de adrenalina e suor, como convém num concerto de rock. Vi-o já algumas vezes depois desse concerto, mas não mais me esqueço daquele primeiro encontro. Inclusivamente, viria a programá-lo na temporada de lançamento dos Banhos Velhos, em 2011. Com o passar dos anos, Paulo Furtado tem procurado reinventar-se, tentando desviar-se de uma fórmula que é por definição limitada, mas mantendo sempre presente a matriz blues-rock que o caracteriza. Há frequências sonoras, que guitarra-baixo-bateria não conseguem preencher. Foi ao ver um concerto de música eletrónica que Paulo Furtado percebeu isso mesmo e decidiu de vestir outro figurino, recorrendo a sintetizadores e sequenciadores. É assim que chegamos a “Zeitgeist”, o disco mais interessante de The Legendary Tigerman desde “Femina”, de 2009. As canções soam mais experimentais, exercícios de remistura, como se tivesse havido um outro disco antes deste, feito com recurso aos instrumentos habituais. Tal como havia feito em “Femina”, acompanham-no outras vozes, como a de Asia Argento (que também participou em “Femina”), Jehnny Beth (Savages) e Delila Paz (The Last Internationale). “Zeitgeist” é um disco inconformado, que foge de todos os lugares de conforto que The Lagendary Tigerman ocupou até agora. Oportunidade para vê-lo ao vivo, no dia 24 de fevereiro, no Centro Cultural Vila Flor.


Micro Audio Waves / Glimmer

(Edição de autor, LP, 2024)

O trajeto dos Micro Audio Waves é discreto. Diria que não será uma banda transversal, a sua música não é orelhuda. A carreira deste projeto tem sido levada com longos tempos entre discos. A música não é imediata, não entra na primeira audição. Há sempre algo perturbador na música dos Micro Audio Waves, algo se estranha e que se entranha logo a seguir. Contudo, este “Glimmer”, saído no início do mês de fevereiro é um disco sem essas arestas, que criavam uma espécie de abrasão no ouvido. É um disco com arranjos que não se desviam da pop, com uma presença preponderante das eletrónicas. Não obstante, o disco é também muito orgânico, com o baixo pungente de Francisco Rebelo e os arpegios de Flak na guitarra. Este, com Carlos Morgado, é responsável pela camada sintetizada do disco. Cláudia Efe mantém a sua personalidade vocal inalterada desde que a ouvi pela primeira vez. Talvez neste disco recorra menos a dissonâncias, que era o que, em parte, muito contribuia para a estranheza que se sentia nos discos anteriores. O disco de 2010, “Zoetrope”, deu origem a um espetáculo irrepreensível do ponto de vista visual. Quem o viu certamente que o terá presente na sua memória. Também em “Glimmer” houve um trabalho conjunto da banda com o coreógrafo Rui Horta, o que originou um espetáculo que, no palco, conta ainda com a interpretação de Gaya de Medeiros. “Glimmer” estreou em Aveiro, coincidindo com a saída do disco e está a circular pelo país. Dia 9 de março terá passagem pelo Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de fevereiro de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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O Que Faltava

O Que Faltava #68

The Smile: Under Our Pillows ◆ Matilha (série RTP) ◆ Joana Sá: a body as listening resonant cartography of music (im)materialities ◆ André 3000: I Swear, I Really Wanted To Make A “Rap” Album But This Is Literally The Way The Wind Blew Me This Time ◆ Cinema Trindade: 7.º Aniversário ◆ Steve Gunn + David Moore ◆ Victor Erice: Fechar os Olhos ◆ Jlin: Black Origami ◆ Mariana Tengner Barros: Threshold

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Jornal de Guimarães, Música

JdG / A Ouvir #30

Cristina Branco / Mãe

(Locomotiva Azul, LP, 2023)

O fim do ano é o momento tido como ideal para se fazerem balanços sobre o que de melhor e pior aconteceu nos últimos 12 meses. É por esta altura que surgem as listas dos melhores discos do ano. Listas para vários gostos, feitas por publicações das mais conceituadas até às do comum ouvinte, seja mais ou menos melómano. Eu também fiz a minha e partilhei-a no primeiro dia de 2024. Essa lista não pode ser definitiva, porque há ainda discos de 2023 que ouvirei em 2024. Por vezes, faço um exercício de ir às listas antigas e perceber que discos sobreviveram à prova do tempo. Uns vingam, outros não. Vou escolher um disco que gostei muito de ouvir em 2023 e que, acredito, continuarei a ouvi-lo com igual prazer no futuro. Cristina Branco é uma cantora que eu acompanho desde o início da sua carreira. Apesar de ser uma artista considerada, não me parece que seja uma muito popular em Portugal. Cristina Branco baseia-se sobretudo no fado, mas faz sempre questão de o misturar com outros géneros, como o jazz, a clássica contemporânea, a canção tradicional ou diversas influências da América do Sul. Talvez por isso a sua discografia seja irregular, mas os últimos cincos discos lançados pela cantora são absolutamente intocáveis, onde se inclui o disco lançado em 2023 chamado “Mãe”. Este é um disco de uma sensibilidade ímpar, onde as palavras são medidas a cada sílaba e os silêncios fazem parte do equilíbrio de que se faz este disco. “Mãe” é um disco a que tenho voltado recorrentemente desde que o descobri, que continuo a ouvir e continuarei certamente a fazê-lo.


Vince Clarke / Songs Of Silence

(Mute, LP, 2023)

Vince Clarke é uma figura discreta. Apesar disso, a sua carreira faz com que seja considerado como uma figura incontornável da música das últimas cinco décadas. Ele e Andrew Fletcher foram os elementos fundadores dos Depeche Mode, mas Clarke também foi o primeiro a sair da banda. Criou depois os Yazoo, os The Assembly e mais tarde os Erasure, projeto com o qual conseguiu hits com canções como “Sometimes” ou “A Little Respect”. Nos anos 1980, ficava maravilhado quando apareciam bandas na televisão em que o teclista tinha três ou quatro frentes de teclados com vários níveis cada uma. Ficava fascinado com os concertos do Jean-Michel Jarre quando davam na TV, embora aí me começasse a parecer que muito daquilo era encenado. Fui entrando por onde quase todos entram, através dos discos dos Tangerine Dream, Amon Düül, Kraftwerk e depois toda a cena new wave nos já referidos anos 80. Mais recentemente, há uns anos, descobri no Youtube um vídeo em que Vince Clarke faz uma visita ao seu estúdio, onde está exposta a sua coleção de sintetizadores. Foi a propósito desse vídeo que comecei a pesquisar mais sobre Vince Clarke. É impressionante a quantidade de música em que Clarke pôs as mãos. No entanto, a produção em nome próprio é bastante reduzida, o que me faz pensar que ele não gosta de fazer música sozinho. “Songs of Silence”, lançado em novembro de 2023, é um conjunto de peças instrumentais, que se materializa na exploração de drones ambientais, que convivem bem com o silêncio, o espaço largo e vazio ou a contemplação. Não será um disco para todos, está muito longe dos hits que Vince Clarke produziu no passado, não é um disco que passe na rádio. Mas há neste conjunto de temas um cuidado intrínseco na forma como é apresentado o que torna a sua audição numa experiência imersiva e reconfortante.

Estes textos foram originalmente publicados na edição de janeiro de 2024 da revista do Jornal de Guimarães.

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Cinema e Televisão

Maestro, dir. Bradley Cooper

Ao ver “Maestro”, filme realizado por Bradley Cooper, biopic sobre o consagrado maestro e compositor Leonard Bernstein (1918-1990), figura incontornável da música do século XX, a minha curiosidade prendia-se mais com o lado da construção da sua personalidade, além do músico e maestro. Esse é um aspeto que o filme trata muito bem.

O filme mostra alguns aspetos da personalidade de Leonard Bernstein – um tipo impulsivo, brilhante, inseguro e extrovertido, que se apaixonava facilmente e não conseguia estar sozinho por muito tempo, nem na casa de banho. Ficamos a perceber algumas das lutas interiores por que passou esta figura e, especialmente, no que respeita às suas relações amorosas.

É curioso como o filme nos mostra isto tudo, colocando-nos quase na posição de voyeurs. A câmara surge muitas das vezes atrás de portas entreabertas ou colocada a um canto, como que nos estivesse a dar a possibilidade de espreitar a vida de Leonard Bernstein. Quando há diálogos, eles são acompanhados ao longe, sempre com planos muito abertos e estáticos, como se a câmara tivesse sido pousada deliberadamente para registar furtivamente aqueles momentos.

Não me parece que este filme viva muito do seu grau de sofisticação, embora explore bastante bem as potencialidades do cinema. Por vezes sabe-me bem ser envolvido por uma grande produção cinematográfica. Um exemplo disso talvez possa ser dado ao nível da cinematografia, em que se simula a tecnologia cinematográfica que seria vigente na época que está a ser retratada no filme. O filme começa com um grande formato cores e depois há um longo flashback, que dura praticamente todo o filme, começando por ser a preto e branco num formato 4:3. Fica a ideia que o filme terá sido gravado com várias máquinas e várias tecnologias, concordantes com o tempo a que respeitam as cenas.

Quem se lembra dos Young People’s Concerts, eles começaram a ser transmitidos na televisão a preto e branco e depois a imagem foi sendo melhorada com o tempo, à medida que a tecnologia foi evoluindo, até à entrada da TV a cores. Com o filme acontece a mesma coisa.

Uma nota final, mas porventura uma das mais importantes notas a fazer sobre este filme é o papel da mulher e a posição central de Felicia Montealegre, notavelmente interpretada por Carey Mulligan.

Logo no início do filme, numa altura em que ambos estavam ainda em início de carreira, há uma fala que subliminar, quando ambos falavam sobre as possibilidades das suas carreiras e Felicia Montealegre, uma atriz da Broadway, diz a Bernstein que ele tem mais hipóteses de de vingar e se tornar uma estrela, desde logo por ser homem.

Creio que há um aspeto que se resume muito bem no ditado que diz: por trás de um grande homem, existe sempre uma grande mullher. O filme sublinha este ponto do princípio ao fim, relevando o papel que Felicia Montealegre teve na vida de Bernstein, seja na forma como se apresentava em público, seja na gestão da sua carreira, seja nas causas ativistas em que ele participava, sendo Felicia, ela própria uma ativista no campo da defesa da educação.

Acho que esta relevância dada à mulher, ao papel da mulher, à sua importância no decorrer desta e doutras histórias, é muito bonita. Houve altura em que me pareceu que o filme é mais sobre Montealegre, do que sobre o pórprio Bernstein. E se calhar até é.

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O Que Faltava

O Que Faltava #66

George Michael ◆ Yolanda Castaño: Matéria ◆ Bradley Cooper: Maestro ◆ Mariano Llinás: La Flor ◆ The Radio Dept. ◆ Ricardo III, de William Shakespeare, enc. Marco Paiva ◆ Joana Sá: Corpo-Escuta ◆ Aki Kaurismaki: Folhas de Outuno ◆ Gorillaz & Bad Bunny

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Cinema e Televisão

Trenque Lauquen, dir. Laura Citarella

O filme “Trenque Lauquen”, realizado pela cineasta argentina Laura Citarella, é uma história fascinante, revelada com uma desarmante simplicidade de meios, onde se filma a ausência e a procura por alguém. O filme começa com uma dessas buscas. Dois homens viajam de carro à procura de alguém, que mais tarde ficamos a saber tratar-se de Laura, que desapareceu misteriosamente durante o decorrer de trabalho de campo, no interior da Argentina.

Este filme é como uma cebola, vai-se descascando por camadas e a seguir àquela primeira camada que nos é apresentada – a busca de Laura por dois colegas – num salto no tempo, ficamos a saber que Laura, paralelamente ao trabalho que desenvolvia como botânica, tinha uma rubrica numa radio local, sobre mulheres que ficaram na  história. Será numa das investigações para esta rubrica radiofónica, no meio dos livros da biblioteca local, que Laura se depara com a existência de uma misteriosa mulher, cujas pistas começa a seguir de forma obsessiva.

Durante essa investigação, Laura chega até à personagem de Carmen Zuna e torna-se única testemunha de um pequeno mistério, que começa com o interior de um exemplar do livro “Autobiografia de uma Mulher Sexualmente Emancipada”, da escritora russa Alexandra Kollontai.

Não se percebe se o desaparecimento de Laura está relacionado com a sua busca de Carmen Zuna. O filme tem duas partes e o que esta primeira parte nos mostra é este triângulo amoroso de uma mulher, Laura, e os dois homens que a procuram, um deles era o seu noivo o outro apaixonara-se por ela.

O filme está construído segundo uma multiplicidade de relatos e tem como inspiração “A Aventura”, de Michelangelo Antonioni. É como se víssemos as personagens numa sala de espelhos onde, em cada reflexo, elas assumem papéis diferentes, em tempos diferentes. É um filme com muitas relações com a literatura e é quase um filme que se vê como quem lê um romance.

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